contos

Woodstock

Sabe aquela sensação de estar apenas passando pela vida? De não fazer nada de relevante, de se incomodar por querer criar algo que seja lembrado mas não poder devido à temida realidade?

Isso me incomoda enquanto encaro um dia de trabalho normal. Fico sentado diante de uma pilha de documentos que esperam a vez para serem resumidos e inseridos no banco de dados. É verdade que existem pessoas em situações muito piores e que não deveria me queixar, mas me queixo. Mais um dia, mais um dia, mais um dia. Ou quase.

Naquele dia foi diferente. Percebi atrás do meu braço um monstrinho amarelo que me cutucava. Dizia ser parte de mim, e repetia uma mesma frase.

Quero escrever, quero escrever, quero falar, quero viajar, quero voar!

Fica quieto, penso, ainda tem muito trabalho pela frente, e dou um tapa que o joga para o outro lado da mesa. Mas não adianta, ele não se abala. Na verdade sequer sente a agressão. Apenas fica rondando, à espreita e na espera do menor desvio de atenção. Basta menos de um segundo, uma pequena olhada para o lado é suficiente.

Pára com isso, pensa, escreve, viaja na maionese, eu sei que você quer!

Não posso, não posso, a empresa, a empresa, o trabalho, o trabalho. Contas e dinheiro, dinheiro e contas, estabilidade e casa, dinheiro, dinheiro, dinheiro. Tenho que trabalhar.

Não é o que quer, eu sei! Vem comigo ao menos por um momento, depois você volta!

E me rendo. Subitamente me despeço da pilha de papéis, computadores e colegas. Vou com o monstrinho, e não tenho mais o monitor à minha frente. O que é isso, uma paisagem impressionista? Ondas de verde e laranja me envolvem. Caminho pelo azul e tento me desvincilhar do vermelho enquanto ouço o monstrinho falar, verbalizando suas idéias provocantes, curiosas e criativas. Woody, o apelido que me vem à mente para ele, me incita com um discurso onde diz que posso ter muito mais se largar isso e embarcar na jornada em sua companhia. Encararia um processo de libertação onde dinheiro é mero detalhe e, com sorte, mera consequência da viagem.

Difícil, eu sei! Mas olhe ao seu redor. Olhe ao seu redor!

Eu olho e, Deus, que visão magnífica. Ondas de grafite em um fundo branco que se fundem com a paisagem urbana em tons de cinza.

Experimente!

Ergo a mão esquerda e a conduzo levemente de cima para baixo. O horizonte muda. O horizonte muda! Ambas as mãos, agora, se agitam em frenesi e reconfiguram a paisagem ao meu bel prazer. E não contenho o riso, ah, posso mais do que imaginava!

Percebe? Percebe o que acontece? Agora chega, é hora de voltar.

Agora não, Woody, só mais um pouco! Só mais um pouco! Mas o pouco se vai, e novamente tenho a tela na minha frente. Os documentos repousam ao meu lado. Não vejo mais o monstrinho.

Faz alguns dias que ele se foi. Me pergunto, todos os dias, onde teria se escondido. Se faz parte de mim, como diz ser, deve estar me esperando. Esperando o dia em que romperei os grilhões, o dia no qual farei o inesperado, o dia em que tudo mudará. Esperando ansioso pela decisão que hesito em tomar.

Um dia crio coragem.