”(…) as pessoas não são tão vaidosas de sua personalidade quanto de sua obra. Elas, acho eu, estranhamente se sentem menos obrigadas para com a personalidade, achando que podem trabalhá-la e mudá-la, enquanto com a obra, depois de vir a público… Bem, nada mais pode ser feito. Sempre quis encontrar um pintor com quem realmente eu pudesse conversar… alguém com qualidades e com um tipo de sensibilidade em que eu realmente acreditasse, uma pessoa que espedaçasse meus quadros, mas com um julgamento em que eu acreditasse de verdade (…) Acho que seria maravilhoso ter alguém que me dissesse faça isso, faça aquilo, não faça isso, não faça aquilo! E que ainda por cima me dissesse por quê. Seria uma grande ajuda.”
Tenho certeza que vários já pensaram nisso, e não tenho medo de apontar a pintura, a escultura e o desenho como formas superiores e mais humanas de arte, pelo simples fato de todas respeitarem a individualidade do espectador. Você vê quando quer, e basta um virar de rosto para apagar a visão daquela pintura brega de um cavalo no pasto.
Já a música não respeita barreiras: ela destroça pessoas com a mesma facilidade que as empolga. Não adianta, aquele axé vai encontrar um caminho da caixa de som ao seu ouvido atravessando o ar, dois andares, as janelas, a parede, a porta, o travesseiro e o tampão de borracha que você tenta desesperadamente interpor na busca do silêncio.
Do mesmo modo o cinema, a televisão e a videoarte. Por precisarem do som para funcionar (nem tanto para a videoarte) ficam tão más quanto a música, e muito mais cruéis nas mãos de pessoas (e uso essa palavra com certa liberdade poética) que precisam mostrar o novo suporte do meio: um Home Theater/Microsystem da Aiwa/Pioneer/CCE/Sharp com 300 GigaWatts de potência. Essas criaturas pegaram a idéia do “se não sabe fazer bem, faça grande” e deram um novo sentido a ela.
A superioridade social da pintura é óbvia. Muitos já gritaram “Abaixo o som aí, ô”. Ninguém jamais disse “larga esse pincel aí, ô, tenho que trabalhar amanhã”. Imagine pessoas se contorcendo na cama porque o vizinho aplicou pela terceira vez o filtro Clouds do Photoshop. Pessoas na biblioteca irritadas porque a atendente acabou de comprar uma tela abstrata vendida no shopping por cem reais e deixou ela no carro. Olhos de visitas sangrando porque elas entraram na sala e viram aquele poster do Salvador Dali sobre o sofá. Não acontece, não acontece.
Por que ninguém falou de William Kentridge? Estou chocado, chocado. Não pelo fato dele ser parecido com o Jon Lovitz, mas por ele ser o desenhista/animador/cineasta mais expressivo que já vi. Vide os desenhos dele aqui, uma entrevista em inglês nesse link e os vídeos no youtube.
Por algum motivo os desenhos dele me lembraram do artista croata Matko Vekic que descobri na exposição de desenhos croatas no Museu Nacional. Hum…
Dave McKean disse uma vez que não há sentido em fazer com que um material seja o que ele não é; que se o interesse é por um realismo preciso, como pintar um tecido, que se use uma fotografia do tecido então em vez de tentar reproduzir a textura com tinta.
“Ah, tá bom. Quem diz isso é porque não sabe pintar”, e enfio o pincel no nariz do fulano que fez o favor de babar no meu braço. Pode até ser, afinal existem tantas técnicas e ferramentas diferentes ao alcance da mão que tornam a criação mais fácil, ao alcance de qualquer um. É ruim? Depende. Pode ser quando algumas pessoas começam a se chamar webdesigners por saberem usar o FrontPage da Microsoft, mas mesmo assim apenas se forem sem noção. E… o que mesmo? Ah, e alguém não sabe ou não quer desenhar? Por que não se expressar por colagens? Ou por fotomontagens? Alison Jackson é uma dessas artistas que souberam brincar com isso, sacudindo um pouco essa cultura das celebridades. Veja essa apresentação no TED, uma conferência sobre Tecnologia, Entretenimento e Design, para conhecer um pouco desse trabalho.
Falo isso porque já estudei desenho acadêmico e técnico e achava tudo muito chato. Sério, para quê desenhar um retrato hiperealista se uma fotografia resolve? Já desenhei sapatos realistas e narizes sombreados e bocas carnudas e olhos brilhantes e rostos completos com tudo isso e minha reação sempre foi “meh”. Digo, faz bem pro ego mas e daí? O desenho era bonito, realista, identificável, mas e daí? Parecia faltar algo mais. Alma, presença, expressão, não sei. Só sei que via um trabalho burocrático, no sentido de sentar e seguir à risca a cartilha técnica. Pode ser bom como aprendizado, mas viver disso? Obrigado, mas não obrigado.
Scott McCloud escreveu em seu Desvendando os Quadrinhos que nesse meio um maior realismo torna a imagem mais impessoal e objetificada, menos reconhecível por alguém, enquanto uma imagem mais icônica, simplificada, torna fácil a identificação do leitor com o personagem. Talvez seja isso, não dá para se reconhecer em uma perna de mesa (acho). Mas deve ter mais aí. Acredito que o artista precisa aparecer de algum modo em sua obra, transmitir sua visão pervertida e distorcida e colorida e esquizofrênica e meu-deus-que-viajem-isso-que-pensei-mas-ficou-legal da realidade para trazer algo que tire do dia a dia a pessoa que vê a imagem, levando-a na imaginação para um lugar ou uma sensação ou uma experiência um pouco mais legal. Afinal, para ver banalidade é só olhar para a rua e as ilustrações vetoriais de propaganda.
Então abandonei esse estudo. Saí do realismo para o abstracionismo, enchendo bordas e mais bordas de caderno com padrões e geometrizações de rostos durante as aulas mais chatas do curso de biologia. Conheci o Paint Shop Pro da JASC bem antes do meu primeiro Mac, e nele aprendi muito do que sei hoje. O Photoshop veio anos depois, seguido pelo Affinity Designer. Porém, mesmo com todo esse conhecimento e esse desprendimento, ficava aquele ranço de “não ser um artista de verdade” por não desenhar mais uma mão com todas as sombras e detalhes. Até um dia ver um quadro de Mondrian e dizer em voz alta, para surpresa de todos ao meu redor:
O LHC foi ligado em algum dia de agosto desse ano, e hoje começaram a circular os feixes pelo anel principal. As partículas devem ficar acelerando ali até meados de outubro, quando atingirão 99% da velocidade da luz, e serão colocados em rota de colisão dia 21 daquele mês. O que vai acontecer depois? É isso que todos querem saber.
O jovem Cthulhu! Recém chegado na vizinhança, o pequeno senhor do mal tenta se adaptar à nova escola mas é rejeitado por seus coleguinhas, que não entendem sua aparência. Entristecido, Cthulu arranja uns parceiros por intimidação e sacrifica seus detratores na hora do lanche ao som de gangsta rap.