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    Desenhos, III

    Dave McKean disse uma vez que não há sentido em fazer com que um material seja o que ele não é; que se o interesse é por um realismo preciso, como pintar um tecido, que se use uma fotografia do tecido então em vez de tentar reproduzir a textura com tinta.

    “Ah, tá bom. Quem diz isso é porque não sabe pintar”, e enfio o pincel no nariz do fulano que fez o favor de babar no meu braço. Pode até ser, afinal existem tantas técnicas e ferramentas diferentes ao alcance da mão que tornam a criação mais fácil, ao alcance de qualquer um. É ruim? Depende. Pode ser quando algumas pessoas começam a se chamar webdesigners por saberem usar o FrontPage da Microsoft, mas mesmo assim apenas se forem sem noção. E… o que mesmo? Ah, e alguém não sabe ou não quer desenhar? Por que não se expressar por colagens? Ou por fotomontagens? Alison Jackson é uma dessas artistas que souberam brincar com isso, sacudindo um pouco essa cultura das celebridades. Veja essa apresentação no TED, uma conferência sobre Tecnologia, Entretenimento e Design, para conhecer um pouco desse trabalho.

    Falo isso porque já estudei desenho acadêmico e técnico e achava tudo muito chato. Sério, para quê desenhar um retrato hiperealista se uma fotografia resolve? Já desenhei sapatos realistas e narizes sombreados e bocas carnudas e olhos brilhantes e rostos completos com tudo isso  e minha reação sempre foi “meh”. Digo, faz bem pro ego mas e daí? O desenho era bonito, realista, identificável, mas e daí? Parecia faltar algo mais. Alma, presença, expressão, não sei. Só sei que via um trabalho burocrático, no sentido de sentar e seguir à risca a cartilha técnica. Pode ser bom como aprendizado, mas viver disso? Obrigado, mas não obrigado.

    Scott McCloud escreveu em seu Desvendando os Quadrinhos que nesse meio um maior realismo torna a imagem mais impessoal e objetificada, menos reconhecível por alguém, enquanto uma imagem mais icônica, simplificada, torna fácil a identificação do leitor com o personagem. Talvez seja isso, não dá para se reconhecer em uma perna de mesa (acho). Mas deve ter mais aí. Acredito que o artista precisa aparecer de algum modo em sua obra, transmitir sua visão pervertida e distorcida e colorida e esquizofrênica e meu-deus-que-viajem-isso-que-pensei-mas-ficou-legal da realidade para trazer algo que tire do dia a dia a pessoa que vê a imagem, levando-a na imaginação para um lugar ou uma sensação ou uma experiência um pouco mais legal. Afinal, para ver banalidade é só olhar para a rua e as ilustrações vetoriais de propaganda.

    Então abandonei esse estudo. Saí do realismo para o abstracionismo, enchendo bordas e mais bordas de caderno com padrões e geometrizações de rostos durante as aulas mais chatas do curso de biologia. Conheci o Paint Shop Pro da JASC bem antes do meu primeiro Mac, e nele aprendi muito do que sei hoje. O Photoshop veio anos depois, seguido pelo Affinity Designer. Porém, mesmo com todo esse conhecimento e esse desprendimento, ficava aquele ranço de “não ser um artista de verdade” por não desenhar mais uma mão com todas as sombras e detalhes. Até um dia ver um quadro de Mondrian e dizer em voz alta, para surpresa de todos ao meu redor:

    -Também não apela, né?

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    Desenhos, II

    Afinal, qual era a segunda palavra?

    Referência.

    Um estalo enorme aconteceu, mas isso foi devido a um mau jeito no braço. Enquanto tentava ignorar a dor, percebi como o poder de copiar ajudaria a criar um personagem: pegue as partes que precisa e as contextualize dentro de suas intenções. “Como assim, Bial?”, você pergunta. Explico. Você precisa de um personagem com mãos na cabeça em meia luz mas não sabe como fica as sombras. Arranje uma câmera e um abajur e tire uma foto de você mesmo na posição. Pronto, basta copiar a foto e seus detalhes. Quer mudar as roupas? Abra uma revista de moda e copie sobre seu personagem os modelos que gostar. Quer criar um monstro? Imagine o conceito, pegue fotos de animais que têm o que você quer e combine os elementos em sua criatura exclusiva. Um peixe transparente pode surgir a partir de uma foto de água viva e outra de um baiacu.

    Olhar. Construir. Copiar.

    Quem diria? Usar referências resolve boa parte dos problemas de criação pois você não precisa adivinhar como uma sombra, por exemplo, funciona. É só montar e copiar. Somada à capacidade de criar associações entre objetos (que comento em outra oportunidade), a técnica permite criação de realidades antes inimagináveis e, paradoxalmente, verossímeis. Quem trabalha com desenho também já conhece esse método de longa data, mas, para este que vos escreve, nem passava pela cabeça antes de levar o tracejado um pouco mais a sério. Treinar ajudou muito, mas foram apenas essas duas palavrinhas em mente, esboço e referência, que realmente mostraram como extravasar as idéias. Fico feliz com o resultado apesar de estar longe do nível desejado, e vejo que agora é tudo questão de tempo investido em treino e muito estudo. Afinal, ainda estou com a sensação de que nem arranhei a superfície do assunto.

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    Desenhos, I

    Há tempos, quando aprendia a desenhar, quebrava a cabeça sobre como diabos fazer isso. Afinal, não conseguia fazer um traço digno de nota. Eu adorava desenhos. Sempre quis aprender a fazê-los. Lembro que ficava fascinado, quando criança, ao ver aquelas ilustrações. Não entendia como o artista conseguia fazer aquela combinação de cores, aquelas sombras, aqueles detalhes. Principalmente, achava incrível como eles acertavam a proporção. Acreditava que um desenho ou uma pintura eram feitos como se escreve: começando no canto superior esquerdo e desenhando/pintando até o fim da página. Mas claro, também acreditava em esquemas de pirâmide e que Rubinho seria campeão.

    A técnica imaginada foi minha primeira tentativa de reproduzir o que via, e logo percebi os problemas. Desenhar desse modo era lento. Dolorosamente lento. Algo em torno de duas semanas para acabar um desenho que no final ficava horroroso, tudo por conta da proporção que ficou completamente errada graças a um tracinho mais curto lá no início do trabalho. Quebrei a cabeça por muito tempo. Por um segundo cheguei a acreditar que desenhistas devia ser mesmo gênios, que “tinham o dom”, e que me “faltava talento”. Mas, teimoso, resolvi procurar um jeito de contornar minha falta de habilidade. Até que descobri do que os sonh… er… as ilustrações são feitas.

    Esboço.

    Essa palavrinha simples e tão óbvia para os desenhistas e pintores explodiu minha mente na época. Em vez de fazer logo de cara o produto final, começa-se com um desenho rápido, simples e nada detalhado. Assim você se preocupa primeiro em acertar a proporção e posicionar direito o desenho. O resto vem depois. Claro! Foi maravilhado que vi como um esboço libera a mente de detalhes como cores, sombras e outros detalhes e ajuda a concentrar no que realmente importa nos estágios iniciais. Mais, essa palavra abriu a mente para uma atitude completamente diferente ao desenhar: seguir etapas. O desenho deixou de ser uma “escrita” para se tornar uma construção. Primeiro o esqueleto, depois a cobertura e os detalhes. O desenho exigia paciência e tempo para a construção, mas normalmente acabava em um dia e com resultados muito mais compensadores. Com a idéia da construção na mão continuei o estudo atrás de novos conceitos. Espaço negativo. Visão bidimensional. Pontos de fuga. Traço valorizado. Tudo ajudava a refinar o traço e melhorar a fidelidade do desenho, a despeito de algumas “liberdades poéticas” tomadas. Mas havia um problema. Era bom em reproduzir retratos. Copiar fotos. Desenhar sapatos. Mas não conseguia criar nada. Um robozinho. Uma criatura inexistente. Uma pose diferente. Parecia impossível fazer as visões mentais aparecerem no papel de modo convincente. Injuriado, passei a conversar com pessoas, visitar fóruns, devorar livros. Nada ajudava, nada funcionava. Até que um dia esbarrei com uma imagem na internet. Foi quando encontrei a segunda palavra.